O Campus do Vale teve pelo menos três figuras mitológicas: O Claus, O Peter Pan e O Shmagorath. O Claus estudava Física no meu tempo. Estava lá há alguns bons anos. Já tinha até sido jubilado. As pessoas dizem que ele não consegue acompanhar as aulas. Ele adora perguntar as horas. Pra qualquer indivíduo. Sem mais sem menos ele te ataca no corredor e pergunta "Que horas são?". E também no meio da aula, em alto e bom som, pra o professor, que responde desconcertado e fica torcendo pra ele ficar quieto. Como ele não está matriculado efetivamente ele escolhe uma disciplina por semestre pra assistir e fica pentelhando o professor a aula inteira, isto é, quando ele vai. Só assiste quando dá na telha.
Ele faz outras perguntas também, além da tradicional. Parecem perguntas cretinas, mas tem fundamento e numa dessas ele pegou o professor desprevinido. Acho que ele estava mais concentrado que o professor e no fim este teve que concordar que o aluno tinha razão. Foi o dia da glória do Claus.
O segundo personagem era um sujeito franzino, de boa aparência, nariz aquilino e vestia umas roupas coloridas, contrastando bem os tons, de um corte semelhante ao traje do Peter Pan. Onde mais eu o via era nas cercanias do RU e da BSCSH, respectivamente, Restaurante Universitário e Biblioteca Setorial de Ciências Socias e Humanidades.
Não se manifetava como o Claus, nunca sequer ouvi a voz dele. Mas a sua simples aparição no Campus me deixava tão alvoroçada como quando eu era criança e lia a historieta do Peter Pan. Era pra mim o próprio, ou melhor, a fantasia dele que tinha tomado forma humana. Nós, entre amigos, ríamos e debochávamos da sua roupa esquisita. Acho que ele nunca se deu conta que tinha admiradores acompanhando os seus movimentos.
Parecia ser aluno regular de algum curso de humanas e eu acreditava que ele se vestia assim por alguma excentricidade apenas. É que o Campus do Vale não dita moda. Toda e qualquer vestimenta, até de monge, pode ser pelos seus frequentadores trajada e respeitada. Digo os seus frequentadores porque vão lá alunos de outros campi também, pra fazer turismo, pesquisar nas bibliotecas ou encontrar amigos.
Conheci um cara que dizia saber reconhecer um estudante de engenharia só pela roupa. E parece possível mesmo. O óculos de sol, o jeans de grife e a camiseta de motivo surfista é quase uma unanimidade. As gurias de baby look e mini saia no verão. Cabelo moderninho. Bolsa e sapato de salto no inverno. Patrícios e patrícias.
Por outro lado se o cara usa cabelo comprido ou barba comprida ou dread locks e toca gaita de boca pelo corredor afora (tinha um cara assim, aquilo ecoava), fuma maconha, veste camiseta do Bob Marley ou do Che Guevara, pode crer que não é engenheiro.
O último personagem mitológico, o Shmagorath, é, de fato, um personagem que habita as paredes dos banheiros masculinos. É o desenho de um monstro cheio de tentáculos com um olho no meio da testa, que alguém, sempre o mesmo carinha, rabisca com caneta de tinta azul. Em baixo ele escreve: Shmagorath virá.
O próprio me explicou que ele não inventou esse personagem, apenas copiou-o de um video game no qual era viciado. E inclusive ele roubou, quero dizer pegou sem a minha permissão, uma caneta de slides do meu estojo, só pra desenhar o Shmagorath.
Certa vez eu estava lá nas Catacumbas (Engenharia Velha), vendo meus e-mails. No meio do processo saí pra ir ao banheiro misto. Quando entrei gritei: Não acredito. Até nas Catacumbas. Foi a primeira e última vez que eu vi o dito cujo na parede de um banheiro.
Não vou contar que o responsável por toda essa baderna nas paredes branquinhas era estudante de Engenharia Química e que o nome dele é Renato Arrieche.
Só um lugar fértil como o Campus do Vale pra produzir um Claus, um Peter Pan e um Shmagorath.